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Marco Antônio Scheuer de Souza

COSAS DEL TANGO

Bons olhos, amados leitores!

Barba. Conhecem-no por Barba. Só. Frequenta o Caffè Bric-à-Brac quando, preferivelmente, ele se achava mais vazio e, neste sentido, mais hospitaleiro. É que mais apto às reflexões solitárias. Barba é um bom solitário. Quando a sós, os seus prazeres solitários são os preconizados por Aristóteles na Ética: os prazeres intelectuais ou, seja, as ideias; uma vez que – como lembrava tal pensador – a mente é na alma o que a vista é no corpo. Tão logo tomava assento à mesa vazia, tão prontamente Pablito lhe servia um chá de lótus. Atendido, outra vez o Barba recolheu-se aos seus pensares. O ambiente parecia iluminado por um tango, esse pensamiento triste que se baila como Discépolo definiu tal gênero musical. E o Barba se deixou levar por essa onda bordada de notas sincopadas, barreada de expressões lunfardas e com cadência quase marcial. Conversando consigo mesmo, nessa gitá interior sacou do baú da sua memória três coisas: um objeto, uma canção e um livro…

O objeto? Um simples par de sapatos. Mas, daqueles sapatos tangueros (os bailarinos de tango os usam até hoje), traduzidos pela soma tradicional da presença de todas as cores (o branco) e da ausência de todas as cores (o preto). Porquanto, um par de sapatos mosaicos. Tais pisantes (em obediência ao lunfardo) – quando acrescidos ao burguês preto e branco de um terno, camisa e gravata – sempre permitiram o impronunciado sonho de um dúbio Arlequim a imitar um esotérico e bem estético tablado em preto e branco. Em suma, um servidor de dois senhores: do arconte terrestre e do arconte celeste! Na linha do horizonte, tanto o nascer quanto o pôr-do-sol produzem a impressão de que o astro-rei se acha, equilibradamente, entre duas porções: a de terra e a de céu. Ilusão de ótica. Todavia, uma agradável ilusão. Semelhantes sapatos, deslizando nas pistas de dança – quiçá, perfumadas e recobertas por uma fina camada de talco – auxiliaram na composição do uniforme dos elegantes coronéis que, em preto-e-branco ou em branco-e-preto, deslizavam pelos sofisticados salões burgueses para os quais migraram os tangos nascidos nos arrabaldes populares de Buenos Aires. Coronéis que representavam a força política rural agropastoril (coronelismo), no uniforme descrito encontravam uniformidade desejável com as demais forças emergentes, naquela burguesia recentemente criada: a acadêmica (burocrática), a comercial e industrial (emporiocrática) e a financeira (plutocrática). Aliás, em sendo verdade o quanto dizem, o gotán porteño teve significatico up grade ao se aliar com o coronelismo argentino. Enfim, reles solilóquios do Barba em torno de um simples par de sapatos…

A canção? Adivinhem… Claro, um tango de Gardel, el morocho (uruguaio? francês?), que alimentava as lendas ao dizer que havia nascido em Buenos Aires aos dois anos e meio… O Barba cuidou daquele tango intitulado Cuesta Abajo. Um clássico que, como tema central, traz a figura de um boêmio, o qual – em relação à mulher amada – se assemelhava a um apaixonado cavaleiro medieval, assaz enamorado de sua encantadora dama. E, no palco da vida, o cantor reproduzia a sublime imagem de um menestrel ou trovador – também, medieval e inspirado – que andava de castelo em castelo; só que de tanguería em tanguería. No gotán Cuesta Abajo, o boêmio sonhador, o menestrel e o cavaleiro andante restam uno et uno (uma e mesma coisa). No texto poético, a audácia do cavaleiro medievo (a quem o amor tornava cego e enfraquecido) fica explícita no instante em que Gardel – interpretando a personagem central – implora pela compaixão do atento ouvinte: si fui flojo, si fui ciego, sólo quiero que comprendan el valor que representa el coraje de querer. Mas, que categoria! E, feito um embrujado caballero, o menestrel relata o quanto se sacrificou por sua bela dama, ainda que mortalmente ferido pelo punhal das ilusões vendidas pela doce língua de uma linda mulher perjura. Perjura, contudo, amada! A terrível dor pungente e o sublime amor eloquente são magnificamente traduzidos nestes versos: ahora, triste en la pendiente, solitario y ya vencido, yo me quiero confesar: si aquella boca mentía el amor que me ofrecía, por aquellos ojos brujos, yo habría dado siempre más. Mulher perjura? Muito! Mulher amada! Muito mais!

O livro? Aquele do filme de Bertolucci: Último Tango em Paris. Romance escrito por Robert Alley, no qual o sexo sem amor – e sem qualquer outro envolvimento emocional – (ou seja, o sexo puramente animal, dito pagão numa das belas canções de Rita Lee), – foi posto em destaque. Amor e sexo, ali, não poderiam se encontrar jamais. Macho e fêmea, sim; homem e mulher, jamais. O outro, por conseguinte, deveria continuar um ser desconhecido, conforme inicialmente acordado. O desejo de romper o acordo é feito uma paixão que leva ao tango. E, como não há tango sem tragédia, o tango conduz a vida até ela. Todo isso é, por óbvio, muito mais que um romance envolvendo, como se costuma dizer, a história de um homem, uma mulher e um pote de manteiga. Como, em verdade, há muitas tragédias sem tango, mas, poucos tangos sem tragédias, a obra não poderia terminar em outra coisa. E, como já percebeu o leitor, nem os solilóquios do Barba a respeito das cosas del tango…

É! O chá de lótus chegou ao fim. Satisfeito, o Barba pagou la cuenta e, despedindo-se, deixou para traz o Café situado no interior da encantada Cittadella Colturale, dedicada às nove inspiradoras Musas e seus respectivos nove Bacos. Amados leitores, bons olhos!

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