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Felipe Fogolari

A MULHER COMO CAMPO DE BATALHA

 

A Mulher como Campo de Batalha (São Paulo: É Realizações, 2012) é uma obra de Matéi Visniec cujo título completo é Do Sexo da Mulher como Campo de Batalha na Guerra na Bósnia. Trata-se de uma peça teatral que retrata o drama de Dora, uma mulher estuprada por cinco soldados do lado inimigo na guerra da Bósnia.

É com vergonha de ser homem que cabe lembrar que o estupro das mulheres do povo considerado inimigo não é novidade na história das guerras. Na Segunda Guerra Mundial, por exemplo, os soldados alemães estupraram milhares de mulheres, por ocasião da invasão da Rússia, gerando os chamados “filhos da guerra” nesses abomináveis estupros. Para aumentar a tragédia, a recíproca foi verdadeira, pois posteriormente o exército russo invadiu a Alemanha e cruelmente retribuiu a maldade.

Antes disso, o mais traumático evento da Segunda Guerra Sino-Japonesa, travada entre o poderoso e expansionista Império do Japão e a pobre e frágil China, foi o Massacre de Nanquim, no qual entre vinte e oitenta mil mulheres (os números são controversos) foram estupradas e mortas, inclusive meninas com menos de dez anos.

Um verdadeiro genocídio ocorreu mais recentemente, nos anos 90 do século passado, durante a guerra entre hutus e tutsis em Ruanda, na qual pelo menos duzentas mil mulheres foram estupradas, sendo que muitas delas foram assassinadas logo depois. Na Guerra da Bósnia, ocorrida na mesma década, entre 1992 e 1995, as cifras oficiais indicam cerca de vinte mil estupros, mas outras fontes indicam que podem ter ocorrido até cem mil casos.

Lembro-me de ter lido certa vez – o contexto específico por ora me escapa – que na Idade Média, durante uma guerra, um exército errou o local no qual seria travada uma batalha. Acabou por chegar no vilarejo do inimigo, onde estavam apenas as mulheres e as crianças, pois os homens já haviam se deslocado para o campo de batalha. Foram veementemente censurados pelas mulheres e dali saíram para o local da luta, envergonhados e pedindo sinceras desculpas. Tragicamente as coisas mudaram nas guerras modernas. Mas qual é o sentido de violar vítimas indefesas após a conquista territorial numa guerra?

O estupro foi em si um instrumento de propagação do medo, mas seu uso – em números, notícias etc. – fez com que a mensagem “entre homens” fosse passada: a mulher enquanto um corpo étnico, símbolo da família, mãe da nação, quando violentado, encerrava a vitimização de toda a nação e a necessidade de proteção por seus homens (ou apontava para seu fracasso, espécie de castração simbólica dos seus defensores) (PERES, Andréa Carolina Schvartz. Campos de estupro: as mulheres e a guerra na Bósnia. Cad. Pagu n. 37, Campinas, SP, Jul/Dez. 2011, p. 144).

Mas não é preciso invocar uma guerra distante, pois o tema é gravíssimo em nosso País. O Brasil registra em torno de 135 estupros por dia; o equivalente a um caso a cada 11 minutos. O Rio Grande do Sul, por sua vez, registrou mais de quatro casos de estupro de crianças por dia no ano passado. A consulta aos dados da Secretaria da Segurança Pública do Estado revela que nas ocorrências policiais foram apontadas 3.063 crianças e adolescentes como vítimas dos abusos. Os registros ainda indicam que em mais da metade desses casos, ou  seja 1.653 (54%), as vítimas tinham menos de 12 anos, o que importa numa média de 4,5 casos por dia de ocorrências de estupro.

Retornando à peça teatral de Visniec mencionada no início, na qual a vítima sobreviveu ao estupro, cabe mencionar que as consequências da violação são indescritíveis, e toda revolta é justificada, como aquela expressada por Dora na referida peça:

Você sabe por que ainda estou viva, agora? Porque descobri que Deus existe. E eu o odeio. Eu o odeio. Antes eu não acreditava que ele existia. Mas, depois, eu disse a mim mesma: “Não, tanta atrocidade não tem sentido, a não ser que Deus tenha desejado isso para se alimentar dessa atrocidade”. E a partir daí, sem ter fé, eu o odeio. E é isso que me faz ficar viva. Eu o odeio tanto que não posso morrer. Simplesmente não posso morrer por causa do ódio (VISNIEC, 2012, p. 139-140).

Tendo em vista o Dia Internacional da Mulher, ocorrido no último dia 08 de Março, é forçoso reconhecer que a sua luta é desigual e as forças infinitamente desproporcionais, mas que a denúncia, a coragem e a garra femininas devem permanecer inabaláveis, para amenizar até suplantar de vez a cultura do estupro e a odiosa tirania masculina.

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