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Feliciano Tavares Monteiro

O eclipse das marinetes

Entre os anos de 1971 e 1976 enfrentei várias viagens de ônibus. E os “bicudos” eram tão rudimentares que, para ir de Erechim para Santa Maria, quase todos optavam pelo trem. Andar pelas estradas era uma aventura…

Mas ainda sinto saudades dos ônibus com escadinha- na Bahia chamados de Marinetes…

Na balsa de travessia, em Marcelino Ramos, o prazer da piazada era subir na escadinha e pular no meio do rio Uruguai – para voltar nadando até o cais da barca.

Boa infância, bons tempos…

Elas conversavam muito enquanto trabalhavam e, como só as mulheres conseguem fazer, falavam sobre tudo sem perder atenção em suas rotinas e as tarefas não sofriam soluções de continuidade. A maioria já era mãe, ou estava prestes a sê-lo… Eram cabeleireiras, massagistas e quase fisioterapeutas e tinham no grande salão de beleza o seu ambiente de trabalho e de convívio social.  Para ali convergiam também, mulheres ricas em busca do aperfeiçoamento de saúde, de mais beleza e autoestima. O local passou a ser um espaço de convívio inter-racial e interclassista e todas, eu disse todas, pouco a pouco começaram a se achar irmãs, participantes de uma mesma sociedade harmônica.

Vieram eleições e a uma motorista de marinete (*) conseguiu se eleger vereadora, e do lado contrário, um médico – adepto de uma dieta voltada para a desidratação plena- se elegeu como prefeito. Seu partido tinha uma ave de rapina como símbolo… O presidente da câmara passou a ser um desafeto de ambos, da marineteira e do prefeito eleito, o que alimentou o salão com metros e metros de fofocas. Pois dois bicudos (**) não se beijam.

Os dias foram e um certo dia um bebum, dos mais populares de Quebra-molas, lançou, em plena praça, o nome da motorista para suceder o médico, na prefeitura. Quase ninguém da classe mais abastada levou aquele lançamento a sério. Mesmo porque o mundo todo estava vivendo uma clonagem econômica monetarista, uma verdadeira Inquisição  Macarthysta, no pós 2008. E em surdina os banqueiros, sem avisar a mais ninguém, firmaram um acordo para continuar filando os recursos dos cofres públicos e, inclusive foram além, mais além. E se pactuaram pelo fim das gorjetas para o mundo periférico. Com isto uma verdadeira caça as bruxas foi montada. O objetivo não era, é claro, acabar com a corrupção que esta no cerne do sistema que nos governa e também gere a estúpida acumulação de rendas- engendradora da violência diária. O objetivo era evitar que mesmo as migalhas e/ou gorjetas doadas a alguns funcionários públicos e outros articuladores de contratos faraônicos, deixassem de ser fornecidas. Para os magos do fanatismo por moedas internacionais os chupa-cabras, locais, dos países periféricos, estavam sendo criativos em demasia. Com a usual utilização do tal jeitinho, passaram maquiavelicamente a conviver com as economias informais muito bem e estavam dando um baile e uma banana aos conceitos juramentados da economia clássica e além de crescer, por suprema heresia econômica estavam distribuindo renda.

E nestes intercâmbios informais catapultaram novos lideres ao mundo dos – vamos dizer – negócios. Agora estes periféricos, por suprema audácia, estavam prestes a deter o capital necessário para cometer o maior dos crimes- constituir um gigantesco banco na periferia do planeta- lá no fim do mundo, como bem costuma dizer o Papa. Ora, um banco assim poderia ombrear em poderio com os velhos (ou velhacos) bancos de praxe, do primeiro mundo.

E então a caça as bruxas se desencadeou, tão pavorosa como foi na velha Idade Média, ou mesmo na era Macarhysta norte-americana, após a segunda grande guerra. Agora não se caçariam nazistas, não se caçariam judeus e nem mesmo os comunistas, de praxe, seriam alvos. O único alvo do momento era o servidor público.

Doravante estes nocivos agentes públicos seriam (pelos oráculos da moral e desmoralizadores de plantão em noticiários) denominados de achacadores e um clima de linchamento tinha de ser e foi montado. E o plano piloto, de teste, como não podia deixar de ser veio ocorrer exatamente aqui, nesta pequena cidade da província.

Voltaram, novamente, as épocas de eleições. E na cidade de Quebra- molas a motorista venceu. Milagrosamente ela venceu e não mais seria uma vereadora da periferia, mas a prefeita eleita- a primeira mulher a chegar lá. As suas amigas lhe deram um banho de salão e ela lá se foi, em uma rural Willis azul e de capota serrada, tomar posse. Mas o céu nunca mais seria da mesma cor…

Governou bem, para os operários, os lavradores, as cabeleireiras e até para o nosso humilde partido dos bebuns. Corajosa foi além e até deu um tranco nas empresas de ônibus que monopolizavam o transporte público no território municipal, e em seu entorno. O que lhe fez ganhar aplausos dos estudantes e perder o apoio de todas as condutoras de marinetes, pois o cartel do transporte respondeu com uma demissão em massa de motoristas mulheres… Fazendo o maléfico favor de priorizar, nesta faxina de gênero, todas as mulheres que dirigiam ônibus e taxis. E, para piorar ainda mais as coisas, a única rádio local do presidente da câmara – que também havia sido eleito – começou a colocar veneno nas notícias. Nas barbearias se dizia que o articulista já estava rico e com uma grande mansão em sua verdadeira pátria- onde já possuía um condomínio em Mim Amim- mas o fato é que ele, recebendo ou não o seu jabá, nunca economizou em hostilizar a prefeita- também fazendo isto em seu panfleto semanal, gratuitamente distribuído.

Depois por risco de noticiar boas novas, ou algo inventivo, a imprensa toda tornou um verdadeiro circo o júri de um contador- que se apossara de dinheiro da merenda escolar. Como o padrinho da infâmia por ondas curtas ainda era vereador, dava dois turnos em suas pregações/perseguições, de dia presidindo a câmara e a noite colocando mais mentiras e petas nos seus programas de rádio. Tudo com a intenção única de denegrir os atos do poder executivo. E, preparando-se para dias futuros e de confronto com a prefeita, colocou a sua bela mulher para distribuir bombons e brinquedos para as crianças carentes durante a páscoa, no natal e até no feriado da padroeira.

A jovem esposa do oponente também montou um clube de socialites para ajudá-la e que tinha um único objetivo: – ganhar a totalidade de opinião pública feminina. Como uma espécie de Procunsulta estas madonas, mais emperiquitadas que árvores de natal, passaram a visitar vários salões de beleza e ali plantavam boatos contra a dinâmica prefeita. E o fel da discórdia começou a crescer…

Um dia, não se sabe como, cidade acordou ao som de foguetes e mais foguetes. E as faixas no coreto e nas principais ruas pediam a renúncia da prefeita. Acusada de ser conivente com os achacadores, acusada de deselegante, acusada de ser… ela mesma.

A mandatária até tentou apelar para o público dos salões de beleza, mas era tarde… Muito tarde. Lideradas pelo competente instituto da fofoca  as moças e senhoras frequentadoras dos institutos de estética já estavam todas contra ela. Haviam pensado bem durante os anos de seu mandato e agora entendiam o que ela significava e o que elas também representavam. Ela, a senhora prefeita, deveria ser um imenso espelho feminino onde todas pudessem se ver. O que estava em julgamento não era seu governo e o seu partido- ou mesmo os longos júris, divulgados nos alto-falantes das praças. Quem estava no banco dos réus era outra figura: – era a esperada imagem de mulher padrão. Imagem fracassada do que elas, mulheres de todo país, eram forçadas a ser. Pois se escabelar, dizer palavrões para subalternos, relapsos, e passar noites insones, resolvendo problemas não se coadunava com a estampa de uma dama. Isto era papel dos homens e deveria voltar a ser assim…

No dia seguinte a cidade foi despertada para a renúncia real. Tão previamente anunciada, tal a crônica do ”Gabo”. E o presidente da câmara assumiu o seu novo cargo como prefeito tampão. O vice-prefeito já havia renunciado durante a noite, fora motivado, aparentemente, por uma boa troca; pois herdaria uma concessão, de trinta anos, para a sua empresa de bicudos, que mais tarde passariam a se chamar de ônibus. E até um canal de TV da capital apareceu, só para filmar o eventual turista de Mim Amim, agora já na qualidade, ou falta dela, de prefeito empossado.

Pausadamente ele subiu as escadas do palácio municipal,  sob aplausos e levando pelo braço a sua linda (e com belíssimas coxas) esposa. No ar havia uma fragrância de perfume francês e todas as belas, ou quase todas, se sentiram como se um espelho mágico ganhasse vida novamente. Elas não eram mais prefeitas… mal humoradas. Eram, e para sempre seriam, as primeiras damas. Perfeitas, risonhas e trajadas em cor de rosa…

De longe os banqueiros sorriram solertemente.

Enfim, a cidade de Quebra-molas havia voltado ao normal…

P.S. Resultado de busca no dicionário informal da Internet:

(*) marinete

Significado de Marinete: Antigo transporte coletivo de passageiro, constituído de uma carroceria de madeira sobre uma plataforma de uma camioneta.

Exemplo do uso da palavra Marinete: Vai para casa de quê?
– Ora, de
marinete!

(**) bicudo

http://wp.clicrbs.com.br/almanaquegaucho/2011/12/16/bagageiros-na-capota/?topo=13,1,1,,,13

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